E se eu fosse eu?

Por Juliana Ramiro, psicanalista

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Imagem meramente ilustrativa. Foto: StockSnap por Pixabay

“E se eu fosse eu?” A pergunta que Clarice Lispector deixou em seu poema é um convite tão simples quanto desafiador. Ela nos provoca a encarar uma questão essencial: quem somos nós, de fato, por trás das máscaras que usamos diariamente?

Para viver em sociedade, aprendemos a vestir papéis, desempenhar funções e, muitas vezes, ocultar nossos desejos mais profundos. Mas até onde essas máscaras nos protegem e onde elas começam a nos aprisionar?

O psicanalista britânico Donald Winnicott introduziu as ideias de verdadeiro e falso self, conceitos que ecoam profundamente nas relações humanas. O falso self é aquele que criamos para atender às expectativas do mundo ao nosso redor — uma construção necessária em muitas situações. É o falso self que nos ajuda a manter as regras de convivência, dizer “obrigado” mesmo quando estamos irritados ou a esconder o desânimo no ambiente de trabalho.

No entanto, o verdadeiro self é aquilo que somos em essência, com todos os nossos desejos, medos e contradições. A questão é: conseguimos reconhecer o nosso verdadeiro self mesmo quando as circunstâncias exigem máscaras?

Reconhecer quem somos, ainda que apenas para nós mesmos, é um ato de coragem e liberdade. Winnicott dizia que a saúde mental está relacionada à proximidade com nosso verdadeiro self. Isso não significa que precisamos expressar todos os nossos desejos a todo momento — afinal, a vida em sociedade demanda compromissos e escolhas. Porém, admitir o que sentimos e desejamos, mesmo que em segredo, é essencial.

É a diferença entre dizer: “Eu não comerei este bolo porque preciso compartilhar ou estou controlando meu peso” e, no íntimo, reconhecer: “Mas eu adoraria comê-lo inteiro”. Esse simples ato de reconhecer nossos desejos, mesmo sem realizá-los, já é uma forma de autenticidade.

Voltando para Clarice. A literatura pode ser uma poderosa ferramenta para nos aproximar do nosso verdadeiro self. Ao mergulharmos na história de outro, aprendemos mais sobre nós mesmos. Como Lacan propôs em seu conceito do Estádio do Espelho, o outro funciona como um reflexo — um espelho no qual nos reconhecemos. Por meio da literatura, somos desafiados a olhar para os nossos próprios conflitos, desejos e limitações. O encontro com o outro, seja ele real ou fictício, é também um encontro consigo mesmo.

Quanto mais próximos estamos de reconhecer quem verdadeiramente somos, menos adoecemos. Nem sempre podemos ser totalmente verdadeiros com os outros, mas conosco mesmos é uma necessidade. Negar nossa essência é um passo em direção ao vazio, enquanto acolhê-la, mesmo que parcialmente, nos permite viver em maior harmonia.

Por fim, deixo uma provocação: se você pudesse ser você, o que faria de diferente hoje? O que deixaria de lado? Saber quem somos, ou ao menos um pouco de quem somos, é o ponto de partida para uma vida mais genuína. Talvez seja essa a chave para encontrar a paz: estar em sintonia com nosso verdadeiro self.

Para aprofundar essa reflexão, convido você a conferir o episódio da semana do podcast Psi Por Aí: “E se eu fosse eu?”, onde converso com o poeta Gabriel Fernandes sobre literatura, psicanálise e o encontro com o verdadeiro self. Uma oportunidade para olhar para dentro e, quem sabe, começar a responder a pergunta que Clarice nos deixou.


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  • Juliana Ramiro é psicanalista, doutora em Letras, e uma apaixonada por música e literatura. E-mail: admin@julianaramiro.com.br

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