
por Tatiane de Sousa, jornalista
O episódio mais recente de uma disputa que vem desde o século XIX foi o encontro entre os presidentes da Guiana, Irfaan Ali, e o da Venezuela, Nicolás Maduro. Sem aperto de mão em público, mas com diplomacia, foi acordado que cessam as ameaças e fica descartado uso da força no conflito envolvendo Essequibo. Na prática, porém, nada mudou: os dois países não arredam pé da reivindicação sobre o território. Um novo encontro deve acontecer no Brasil nos próximos meses.
Essequibo. Esse é o nome do território que virou assunto nos noticiários do mundo todo nas últimas semanas, apesar de a maioria das pessoas sequer tenha escutado falar dessa área anteriormente. São cerca de 160 mil km² (maior do que o estado do Ceará) onde moram de forma pacífica 125 mil habitantes, 80% deles índios originários que vivem principalmente de recursos da floresta como cana-de-açúcar, arroz e pesca.
Porém, apesar da vocação agrícola da população, a região quase toda de mata possui reservas de diamantes, ouro e bauxita, e desde 2015 passou a ter novo status político e econômico na América do Sul com a descoberta de petróleo pela multinacional americana ExxonMobil. Fazendo fronteira com Roraima e Pará, pelo Brasil, e tendo também a Venezuela a oeste, o território faz parte da Guiana, mas sempre foi foco da cobiça venezuelana.
No início do mês, venezuelanos foram às urnas e aprovaram através de referendo a anexação de Essequibo pela Venezuela. Apesar das contestações, dias depois o presidente Nicolás Maduro mandou trocar até mesmo os mapas distribuídos nas escolas, colocando o território, ainda da Guiana, como parte do país governado por ele.
O professor-doutor em Geografia Regional e Política da Universidade de São Paulo (USP), André Roberto Martins, explica que desde a década de 1840 a região foi disputada entre Venezuela e Reino Unido, pois trata-se de uma floresta densa e com presença de pântanos onde é difícil estabelecer uma linha divisória, daí que os venezuelanos reivindicassem o rio Essequibo como sua fronteira oriental.
Um laudo de 1899 cedeu terras à esquerda da foz aos britânicos, o que foi contestado pela Venezuela. Com a independência da Guiana em 1966, a questão ficou de ser resolvida diretamente entre as partes, o que a Guiana recusa jogando a arbitragem para a Corte Internacional de Justiça.
Apesar da controvérsia, “a consulta serve para medir tanto a popularidade do próprio Maduro, como dá uma espécie de recado à Guiana”, diz Martins. “É importante frisar que a oposição a Maduro também apoia a reivindicação territorial”, ressalta.
Ainda antes do referendo, a Corte Internacional de Justiça expediu uma decisão sobre um pedido feito pela Guiana. Na sentença, disse que a Venezuela não poderia tomar medida que mudasse a situação atual do território.
Entenda a cronologia da disputa:
1811: Independência da Venezuela com a região de Essequibo fazendo parte do país.
1814: Reino Unido comprou a Guiana Inglesa por um tratado com os Países Baixos que não contém, no entanto, a definição das fronteiras com a Venezuela.
1840: o Reino Unido nomeou o explorador Robert Shomburgk para definir essa fronteira e foi inaugurada a Linha Schomburgk que adicionou 80 mil quilômetros quadrados ao território inicialmente adquirido dos Países Baixos.
1841: início da disputa territorial com denúncia da invasão do território venezuelano.
1895: aliado da Venezuela naquele momento, EUA denunciaram a definição da fronteira e recomendaram definição por arbitragem internacional.
1899: emitida a Sentença Arbitral de Paris, que decidiu de forma favorável ao Reino Unido.
1949: memorando de advogado que atuou na defesa da Venezuela no processo em Paris torna-se público e denuncia imparcialidade dos juízes do caso. Venezuela se usando do documento solicita nulidade da sentença.
1966: Acordo de Genebra, assinado entre Guiana e Venezuela, reconheceu a reivindicação venezuelana e se comprometeu a buscar soluções para resolver a disputa a partir de uma comissão mista. O documento, porém, prevê que, se não houver acordo, o caso deve ser resolvido pela Organização das Nações Unidas (ONU).
2015: a petroleira norte-americana ExxonMobil anunciou ter encontrado enormes depósitos de petróleo na costa da área disputada.
2018: a ONU determinou que o caso fosse julgado pela Corte Internacional de Justiça, em Haia. A Venezuela questiona a legitimidade da instituição para arbitrar no caso.
O doutor venezuelano em Estudos Estratégicos Internacionais, Ricardo Salvador De Toma-García, explica que a retomada do assunto sobre o território do Essequibo não é um improviso de Maduro ou um rompante do povo venezuelano.
“É uma iniciativa de um governo que está respondendo a conjuntura que existe na corte internacional diante de uma demanda apresentada pela Guiana”, defende o pesquisador. Ele ressalta que o território é importante para a Venezuela porque a usurpação desse espaço já afetava a dignidade do país antes mesmo de se reconhecer o potencial de recursos existente na área. Para a Guiana, explica que a importância é de que Essequibo representa 75% do território ocupado.
“Quando a Guiana nasce como República (1966), ocupa e administra esse território transferido pelos britânicos como herança (…) mas reconhecendo no próprio Acordo de Genebra que em razão da assinatura do acordo, continuaria ocupando e administrando esses territórios mas que isso não implicava a existência de direitos de soberania”, pontua.
De Toma-Gárcia, que desenvolveu pesquisa sobre a questão do Essequibo na Universidade de Roraima e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), avalia que a consulta popular realizada pela Venezuela foi desnecessária e que as perguntas só serviram para polemizar a questão e abrir um portal que pode trazer cenários imprevisíveis e mesmo perigosos.
“O resultado do plebiscito (que apontou que venezuelanos são a favor da reivindicação do país pelo território) não muda em nada o cotidiano da população que tem outras prioridades a serem tratadas para a eleição que acontece no ano que vem. Na prática, a consulta apenas respalda a posição que o governo deve apresentar até abril à Corte Internacional e para medir a intenção de participação de venezuelanos no pleito”, acrescenta.
O que está em disputa além do território:
A descoberta da ExxonMobil eleva as reservas de petróleo da Guiana para cerca de 11 bilhões de barris, representando cerca de 0,6% do total mundial. A Guiana torna-se assim um País com o Produto Interno Bruto (PIB) com crescimento de 25% este ano. Em 2022, o aumento no PIB foi de 57,8%. A contestação da Venezuela é de que apesar de não haver uma decisão a favor da Guiana, o país emite licenças de exploração para as multinacionais que atuam na região.
O que o Brasil tem com isso?
O Brasil tem atuado como intermediário no processo de paz em nome da estabilidade da América do Sul e tem mantido posição de neutralidade. Entretanto, o governo americano realizou voos de reconhecimento e observação na região de Essequibo como aliado da Guiana e Venezuela por sua vez, deixa claro que tem poderio militar para o caso de um conflito.
O governo brasileiro, apesar de publicamente dizer que são remotas as chances de um conflito, mobilizou tropas para a localidade que faz divisa com a fronteira norte do Brasil, no estado de Roraima. A explicação para a movimentação é de que, no caso de um confronto por terra, as tropas venezuelanas passariam pelo norte de Roraima porque a área compartilhada entre Venezuela e Guiana fica em mata fechada, o que impossibilitaria o avanço de tropas. Já uma rota por mar seria lenta e com reconhecida vulnerabilidade, impulsionando um ataque pelo norte de Roraima.
Como o restante do mundo fica de olho nisso e pode intervir?
Para o professor-doutor André Roberto Martins, a solução deve ser o estabelecimento de limites marítimos claros, preservando o delta do rio Amacuro como base da projeção marítima venezuelana.
“Em outras palavras, tomar parte das reservas de petróleo que estão no subsolo marítimo. Isto se choca com a Exxon que já está explorando essas reservas”, opina. “E o atual presidente da Guiana está muito alinhado com os ingleses e norte americanos que querem montar uma base militar justamente ali”, finaliza.