Entre espinhos e silêncios: o dilema de estar com o outro sendo mulher

Por Juliana Ramiro, psicanalista – colunista sobre saúde mental

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Imagem meramente ilustrativa. Foto: Silvo Bilinski por Pixabay

Arthur Schopenhauer, no século XIX, formulou o Dilema do Porco-Espinho: num dia frio, os porcos-espinhos tentam se aproximar para se aquecer, mas, ao chegarem perto demais, se ferem com os espinhos uns dos outros. A solução? Uma distância possível, nem tão próxima que machuque, nem tão distante que congele.

A metáfora sobre a convivência humana segue viva e, como lembra Leandro Karnal, ganhou novas camadas com a internet: agora estamos juntos o tempo todo, conectados, visíveis, opinando, mas a proximidade virtual não garante afeto. Pelo contrário, multiplicam-se as farpas, os cancelamentos e a incapacidade de sustentar a diferença.

Mas há um espinho que, hoje, dói de forma particular: o de estar com o outro sendo mulher.

No Brasil, e especialmente no Rio Grande do Sul, onde os índices de feminicídio aumentaram de forma alarmante, a violência contra as mulheres tem se tornado rotina. Segundo dados recentes da Secretaria de Segurança Pública, o estado registrou mais de 90 casos de feminicídio em 2024, o maior número da série histórica. São mulheres mortas por homens com quem se relacionavam ou se relacionaram, vítimas de uma lógica que confunde amor com posse e presença com controle.

Diante disso, a convivência amorosa torna-se uma zona de risco. Parece que a única forma de uma mulher estar plenamente segura é não estar acompanhada. Esse paradoxo revela o quanto o machismo estrutural ainda pauta as relações, um sistema falocêntrico que, por séculos, ensinou que o homem é o sujeito e a mulher, o objeto de seu desejo.

A psicanálise, em alguma medida, também contribuiu para esse cenário. Ao sustentar a diferença sexual como fundante do sujeito, “a mulher não existe”, dizia Lacan, parte da teoria acabou reforçando uma hierarquia simbólica que associou o masculino à razão e o feminino à falta. No entanto, esse modo de pensar está sendo desafiado por autoras e autores que ampliam o campo da escuta e do desejo.

A socióloga Judith Butler propõe que o gênero é uma performance, uma construção social reiterada, e não uma essência biológica. O filósofo Paul B. Preciado, por sua vez, vai além ao afirmar que o corpo é um campo político em disputa, e que a própria noção de “normalidade” é uma ferramenta de poder: o Estado, a medicina e até as teorias psíquicas decidem quem é sadio, quem é desviante, quem merece existir.

Nessa perspectiva, a escuta psicanalítica contemporânea precisa reconhecer que muitos dos modos de ser antes tratados como patologia ou desvio são, na verdade, exercícios de liberdade, tentativas de viver fora da norma, do gênero, do corpo ou do amor impostos. O poder, afinal, dita as normas e os corpos; quem não se encaixa é rapidamente diagnosticado como doente.

Retornando ao dilema dos porcos-espinhos: talvez o verdadeiro frio de hoje não seja o da distância, mas o do medo. Medo de estar perto e ser ferida. Medo de confiar e ser silenciada. Medo de amar e morrer por isso.

Vivemos em uma sociedade onde os espinhos do poder, patriarcal, violento e desigual, tornam a convivência insuportavelmente dolorosa. Ainda assim, resistir é continuar buscando encontros possíveis, sem perder o corpo nem a voz no caminho.

Te convido a refletir mais sobre este e outros temas acompanhando os episódios do Psi Por Aí, disponíveis no YouTube e no Spotify. E, claro, siga também o Psi Por Aí nas redes sociais. Aceito sugestões de temas! Até a próxima semana.

  • Juliana Ramiro é psicanalista, doutora em Letras, e uma apaixonada por música e literatura. E-mail: admin@julianaramiro.com.br

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