
Nos últimos dias, esse tema voltou a aparecer com força no consultório. E, se olharmos com atenção, ele é recorrente. Com frequência, os adultos e adolescentes que acompanho foram, um dia, crianças que não puderam ter querer. Por isso, te pergunto: você já ouviu a frase “criança não tem querer”?
Essa frase, muitas vezes dita com convicção, parte da ideia de que somente os adultos sabem o que é melhor para as crianças. E, em parte, há alguma verdade nisso — afinal, cabe aos adultos zelar pela saúde física e emocional das crianças, garantindo sua segurança, alimentação, sono, higiene, vacinação. Mas essa proteção não deve significar a aniquilação do desejo infantil.
Na psicanálise, compreendemos que o desejo é estruturante do sujeito. Como disse Freud, somos seres de desejo — é ele que impulsiona nossa vida e nos move em direção àquilo que queremos ser ou conquistar. E esse desejo existe desde muito cedo. Uma criança deseja. Ela escolhe, experimenta, se frustra, insiste, inventa. Por isso, permitir que ela reconheça e tenha espaço para elaborar seu desejo é tão importante quanto estabelecer os limites que garantem seu cuidado.
A mediação é o papel do adulto: não se trata de dizer “sim” para tudo, mas de ouvir, considerar, validar e ensinar a criança a lidar com seus próprios quereres. É assim que ela aprende a construir preferências, a fazer escolhas, a se posicionar no mundo — mesmo que, muitas vezes, precise de ajuda para entender por que não pode sair de camiseta num dia de inverno.
Uma criança pode escolher a cor do seu casaco, o ritmo que mais gosta de dançar, as pessoas que quer abraçar, a fantasia que quer usar no fim de semana. Esses pequenos gestos de escolha são também exercícios de constituição do eu. São oportunidades para a criança desenvolver autonomia, segurança e senso de identidade.
Quando os adultos desconsideram completamente o querer infantil, correm o risco de criar adolescentes inseguros e adultos que não sabem o que querem — ou, pior, que passam a vida inteira tentando agradar aos outros, sem nunca ouvir a própria voz, o próprio desejo.
Por fim, vale lembrar: infância, adolescência e vida adulta fazem parte de um contínuo. Nossa criança interna não desaparece. Ela está sempre em cena, especialmente quando somos colocados diante das nossas vontades, inseguranças e escolhas.
Te convido a refletir mais sobre este e outros temas acompanhando os episódios do Psi Por Aí, disponíveis no YouTube e no Spotify. E claro, siga também o Psi Por Aí nas redes sociais. Aceito sugestões de temas! Até a próxima semana.
- Juliana Ramiro é psicanalista, doutora em Letras, e uma apaixonada por música e literatura. E-mail: admin@julianaramiro.com.br