
Sempre que chega uma criança ao consultório, uma das investigações mais importantes é sobre o seu brincar. Como ela brinca? Com o que brinca? Consegue permanecer nas brincadeiras? Consegue fantasiar? Permite que o outro participe de sua brincadeira? Essas são questões fundamentais que observo nas primeiras sessões.
Já ouvi algumas vezes – tanto de pais quanto de pacientes – a seguinte frase: “Eu só venho aqui para brincar.” Só? O brincar é a atividade mais importante que uma criança deve realizar. E a qualidade do brincar diz muito sobre seu estado psíquico.
Uma criança deprimida não brinca, perde a capacidade de fantasiar. Uma criança ansiosa não consegue permanecer tempo suficiente em uma brincadeira. Uma criança exposta excessivamente às telas pega um bloco de madeira e não sabe o que fazer com ele. Brincar é coisa séria, e nós, adultos responsáveis pelo desenvolvimento infantil, precisamos observar, cuidar e mediar esse brincar.
Mediar o brincar? Sim.
Um exemplo simples é refletir sobre os tipos de brinquedos que oferecemos.
Recebi o relato da mãe de uma paciente, que a filha de dois anos chegou maquiada da escola. Ao buscar informações, descobriu que no “dia do brinquedo” não é raro meninas de dois, três, quatro anos levarem maquiagem para brincar. Isso é de assustar.
Houve um tempo em que se proibiu que crianças levassem armas e espadas para a escola, por incitarem à violência. E a maquiagem? O que ela incita? A vaidade precoce, a necessidade de parecer “mais bonita” do que já é em sua natureza infantil.
Será que uma menina tão pequena deveria ocupar-se com preocupações estéticas e performances? Será que não estamos empurrando nossas crianças para questões adultas muito antes da hora?
O que um brinquedo ensina? Bonecas ensinam a cuidar – meninos também deveriam brincar de bonecas. Carrinhos e veículos desenvolvem o senso de autonomia – meninas também deveriam brincar de carrinhos. Massinhas, blocos, bolas desenvolvem criatividade, construção, cooperação.
Maquiagem, por outro lado, não é brinquedo de criança. Uma criança deveria ser livre para experimentar sua beleza natural, sem a necessidade de artifícios. Uma menina que aprende desde cedo que é linda exatamente como é, talvez cresça com mais segurança, autoestima e menos dependência da validação externa.
Quando ensinamos a uma menina que ela precisa de algo além do que é para ser aceita ou admirada, abrimos brechas para futuros relacionamentos perigosos, nos quais ela poderá aceitar menos do que merece.
Brincar, criar, fantasiar são pilares para o crescimento saudável. Hoje, muitos se preocupam com a adolescência cada vez mais precoce. Mas nos esquecemos de que somos nós quem apressamos a infância.
Ao invés de maquiar nossas crianças ou colocá-las diante de telas infinitas, precisamos apresenta-las aos brinquedos de verdade: bolas, carrinhos, bonecas, massinhas, blocos de madeira, livros. Uma infância bem vivida, com brinquedos adequados, é a semente de uma adolescência que chega no tempo certo e de adultos mais criativos, resilientes e autênticos.
Uma criança que brinca é uma criança que cria caminhos para lidar com o mundo, para se proteger, para se reinventar diante das dificuldades. E bom, a vida adulta é cheia de dificuldades. Essa criança estará mais preparada, certamente.
Brinquedo é coisa séria. E infância também.
Para aprofundar a reflexão sobre a importância do brincar e da infância, confira o episódio do Psi Por Aí com a participação de Anna Lucia Leão Lopez, psicanalista, musicoterapeuta e coordenadora do Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância e Adolescência (NEPsI) do Círculo Brasileiro de Psicanálise do Rio de Janeiro (CBP-RJ).
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- Juliana Ramiro é psicanalista, doutora em Letras, e uma apaixonada por música e literatura. E-mail: admin@julianaramiro.com.br